Quarto Escuro
Desde que me lembro que vivia na escuridão. Entre quatro paredes pelas quais nunca passava e pelas quais a única luz que penetrava era aquela que vinha com a mão, que por uma pequena portinhola me alimentava. Também por essa portinhola entrava a ponta da mangueira que com um jacto de água empurrava os meus dejectos para um estreito e longo buraco, pelo qual, devido à sua inclinação não entrava qualquer luz e apenas se deixava percorrer por uma brisa suave que arejava o meu universo.
Este quarto era toda a minha realidade, e se sabia falar era por ouvir as vozes, que gritavam e riam lá fora por entre brincadeiras, e as vozes, estas mais pesadas, que as chamavam para comer ou tomar banho. Através delas conhecia toda uma realidade a que eu não pertencia. Por várias vezes as interpelei perguntando-lhes quem eram... Mas rapidamente aprendi a não o fazer. Nunca obtia resposta e o único resultado era fazer as vozes calarem-se como se algum pavor desconhecido para mim as impedisse de falar e as fizesse desaparecer. De todas as vezes tentava abrir a porta que com o tacto descobri à muito e cuja localização conhecia de cor. Nela estava colocada a portinhola, mas todos os meus esforços eram escusados... A porta, que de tão hermeticamente fechada nem um fio de luz ou de ar deixava entrar, nem se mexia e eu apenas me magoava quando a tentava arrombar. Aos poucos conformei-me com a minha realidade e quando as vozes vinham juntava-me a elas num êxtase, imaginando-me a rir junto a elas e a participar das suas brincadeiras. Eram os melhores momentos da minha vida, aqueles em que eu era livre e podia passear por um pátio que me estava de outra forma inacessível.
Mas com o tempo as vozes foram desaparecendo. Aos poucos deixei de as ouvir naquelas tardes quentes em que costumavam correr atrás umas das outras. Ao longo de muito tempo fiquei abandonado a uma monotonia que apenas era interrompida por uma mão cada vez mais enrugada.
Vivia a imaginar se algum dia as vozes voltariam, sonhava com elas apenas para acordar ainda mais desesperado quando descobria que continuava na mesma miséria de vida solitária.
O tempo passou de tal maneira que o meu quarto começou a ficar degradado aos poucos e a porta antes tão impermiável deixava agora passar uma fina luz constante e mesmo quando lá fora essa luz desaparecia uma mais fraca substituía-a. Eu tentava espreitar por essa fresta constantemente mas não conseguia ver nada. A fresta era apesar de tudo mínima e não deixava ver nada para além da luz que por ela entrava. Ainda assim aquela luz animava-me. Mesmo sendo tão pouca que não conseguia iluminar nada dentro divisão, eu podia vê-la todos os dias...
Um dia dei comigo a sonhar novamente com as vozes que outrora ouvira. Mas estas eram estranhas. Pareciam diferentes daquelas que conhecia, como se pertencessem a outras crianças. Aos poucos fui-me apercebendo que não estava a dormir. Aquele estado de solidão deixara-me num estado em que sonho e realidade se confundiam por vezes, mas eu estava acordado... E as vozes tinham voltado. Eram outras mas tinham voltado. E num momento todo o meu universo se encheu de alegria. Levantei-me e corri para a porta tentando espreitar pela frincha de luz. Não consegui ver nada como já não esperava conseguir de qualquer maneira. Fiquei ali, em silêncio, temendo que o mínimo ruído que fizesse espantasse as vozes e as levasse a desaparecer para sempre. Assim fiquei durante aquilo que deverão ter sido horas, entre corridas e brincadeiras, nas quais acompanhava aquelas crianças no meu mundo imaginário, e pensando como seria estar realmente da parte de fora daquela porta a correr e a brincar.
Até que uma outra voz as veio chamar para almoçar, também ela não era a voz adulta que era costume, mas sim uma outra diferente... Diferente, mas ao mesmo familiar. Não percebia de onde mas conhecia aquela voz, até que a reconheci. Era a mesma voz que tempos atrás brincou lá fora juntamente com outras vozes, ainda que tivesse diferenças. Era mais madura, como se a criança a quem a voz pertenceu se tivesse transformado na senhora que que tempos atrás a chamava para almoçar, tendo no entanto mantido a mesma essência, e tivesse vindo aqui para trazer de novo a alegria que sentira naqueles tempos em que a voz era criança. Mas quando acabei estas reflexões dei-me conta do silêncio que se instalou novamente e entrei em pânico, temendo que as vozes não fossem voltar jamais. Recuei para trás e ganhei balanço para tentar aquilo tentara tantas vezes sem sucesso. Corri e embati com toda a força contra a porta e ela caiu. O tempo não a tinha poupado e tinha degradado a sua estrutura e as suas dobradiças. Mas assim que eu caí no chão juntamente com a porta aquela luz que sempre desejara ver totalmente ofuscou-me de tal maneira que tive de fechar os olhos. Mantive-os fechados durante alguns minutos abrindo-os lentamente, habituando-os aos tons que via pela primeira vez. Tons castanhos da terra aos meus pés e dos troncos das árvores que erguiam um verde belo nas pontas dos seus ramos, onde me imaginei vezes sem conta a baloiçar, o branco resplandecente das paredes de uma casa que se erguia à minha frente. A casa era enorme, pelo menos dava impressão que cada divisão que tivesse seria sem dúvida bem maior que o pequeno quarto que até há pouco era tudo o que conhecia. Mas não estava ninguém na rua, todos deveriam estar a almoçar, mas onde? Dirigi-me para a casa e entrei por uma porta que abri entrando numa divisão onde se encontravam algumas pessoas que desataram a fugir e gritar assim que me viram. Não percebi porquê e aquilo abalou-me muito. Porque teriam aquelas pessoas medo de mim? Tentei falar mas não consegui. Parecia que todos estes anos sem expressar qualquer som me tinha privado dessa função. Segui então de divisão em divisão movendo-me suavemente tentando que as pessoas vissem que eu não lhes queria mal. Passei por algumas divisões vazias, ouvindo a confusão de vozes que gritavam até que entrei numa grande divisão onde se encontrava uma longa mesa. Ao fundo da mesa encontrava-se uma senhora de pele enrugada e na qual reconheci a mão, poisada sobre a mesa, que me alimentou durante toda a minha vida e ao longo da mesa estavam várias pessoas e crianças que se calaram em pânico assim que entrei. Dei um passo para a frente. Um passo curto e tímido mas que foi suficiente para que uma bela criança que se encontrava perto de mim se levantasse a fugir. Fugiu de encontro a uma senhora que se levantou de faca na mão envolvendo a criança protegendo-a com os seus braços. Ela tinha um rosto lindo de cabelos compridos e encaracolados de cor loura, com uns belos olhos azuis e de resto a criança era em tudo parecida com ela. A senhora, ganhando coragem no medo daquela que tomei por sua filha, gritou-me dirigindo para mim a faca que ainda empunhava:
- Ide embora! Que desejais? Ide!
Aquela voz... sempre aquela voz. Falando-me com uma agressividade que eu não percebia e eu não resisti. Caindo de joelhos no chão deixei sair dos meus olhos lágrimas que há muito julgava perdidas e consegui finalmente falar:
- Mas... eu apenas queria... brincar...
E nisto os olhos azuis da criança que estava uns metro à minha frente mudaram de expressão. O medo deu lugar a uma compaixão e dirigiu-se a mim pegando-me na mão e arrastando-me para fora daquela sala. Ao sair vi um estranho vidro onde via a mesma menina doce que segurava a minha mão, mas essa menina segurava na mão de um monstro. Um ser de mãos grossas e cara peluda onde se realçavam dois olhos rasgados com uma pupila fina e alta numa íris amarela e um nariz achatado e constituído por duas narinas fendadas. E então eu percebi... Eu era o monstro e essa era a razão porque nunca havia brincado com as crianças que corriam o pátio do lado de fora do meu quarto. Mas a menina não me deixou estar ali muito tempo:
- Anda! - Disse ela - Vamos brincar!
E brincamos...
Este quarto era toda a minha realidade, e se sabia falar era por ouvir as vozes, que gritavam e riam lá fora por entre brincadeiras, e as vozes, estas mais pesadas, que as chamavam para comer ou tomar banho. Através delas conhecia toda uma realidade a que eu não pertencia. Por várias vezes as interpelei perguntando-lhes quem eram... Mas rapidamente aprendi a não o fazer. Nunca obtia resposta e o único resultado era fazer as vozes calarem-se como se algum pavor desconhecido para mim as impedisse de falar e as fizesse desaparecer. De todas as vezes tentava abrir a porta que com o tacto descobri à muito e cuja localização conhecia de cor. Nela estava colocada a portinhola, mas todos os meus esforços eram escusados... A porta, que de tão hermeticamente fechada nem um fio de luz ou de ar deixava entrar, nem se mexia e eu apenas me magoava quando a tentava arrombar. Aos poucos conformei-me com a minha realidade e quando as vozes vinham juntava-me a elas num êxtase, imaginando-me a rir junto a elas e a participar das suas brincadeiras. Eram os melhores momentos da minha vida, aqueles em que eu era livre e podia passear por um pátio que me estava de outra forma inacessível.
Mas com o tempo as vozes foram desaparecendo. Aos poucos deixei de as ouvir naquelas tardes quentes em que costumavam correr atrás umas das outras. Ao longo de muito tempo fiquei abandonado a uma monotonia que apenas era interrompida por uma mão cada vez mais enrugada.
Vivia a imaginar se algum dia as vozes voltariam, sonhava com elas apenas para acordar ainda mais desesperado quando descobria que continuava na mesma miséria de vida solitária.
O tempo passou de tal maneira que o meu quarto começou a ficar degradado aos poucos e a porta antes tão impermiável deixava agora passar uma fina luz constante e mesmo quando lá fora essa luz desaparecia uma mais fraca substituía-a. Eu tentava espreitar por essa fresta constantemente mas não conseguia ver nada. A fresta era apesar de tudo mínima e não deixava ver nada para além da luz que por ela entrava. Ainda assim aquela luz animava-me. Mesmo sendo tão pouca que não conseguia iluminar nada dentro divisão, eu podia vê-la todos os dias...
Um dia dei comigo a sonhar novamente com as vozes que outrora ouvira. Mas estas eram estranhas. Pareciam diferentes daquelas que conhecia, como se pertencessem a outras crianças. Aos poucos fui-me apercebendo que não estava a dormir. Aquele estado de solidão deixara-me num estado em que sonho e realidade se confundiam por vezes, mas eu estava acordado... E as vozes tinham voltado. Eram outras mas tinham voltado. E num momento todo o meu universo se encheu de alegria. Levantei-me e corri para a porta tentando espreitar pela frincha de luz. Não consegui ver nada como já não esperava conseguir de qualquer maneira. Fiquei ali, em silêncio, temendo que o mínimo ruído que fizesse espantasse as vozes e as levasse a desaparecer para sempre. Assim fiquei durante aquilo que deverão ter sido horas, entre corridas e brincadeiras, nas quais acompanhava aquelas crianças no meu mundo imaginário, e pensando como seria estar realmente da parte de fora daquela porta a correr e a brincar.
Até que uma outra voz as veio chamar para almoçar, também ela não era a voz adulta que era costume, mas sim uma outra diferente... Diferente, mas ao mesmo familiar. Não percebia de onde mas conhecia aquela voz, até que a reconheci. Era a mesma voz que tempos atrás brincou lá fora juntamente com outras vozes, ainda que tivesse diferenças. Era mais madura, como se a criança a quem a voz pertenceu se tivesse transformado na senhora que que tempos atrás a chamava para almoçar, tendo no entanto mantido a mesma essência, e tivesse vindo aqui para trazer de novo a alegria que sentira naqueles tempos em que a voz era criança. Mas quando acabei estas reflexões dei-me conta do silêncio que se instalou novamente e entrei em pânico, temendo que as vozes não fossem voltar jamais. Recuei para trás e ganhei balanço para tentar aquilo tentara tantas vezes sem sucesso. Corri e embati com toda a força contra a porta e ela caiu. O tempo não a tinha poupado e tinha degradado a sua estrutura e as suas dobradiças. Mas assim que eu caí no chão juntamente com a porta aquela luz que sempre desejara ver totalmente ofuscou-me de tal maneira que tive de fechar os olhos. Mantive-os fechados durante alguns minutos abrindo-os lentamente, habituando-os aos tons que via pela primeira vez. Tons castanhos da terra aos meus pés e dos troncos das árvores que erguiam um verde belo nas pontas dos seus ramos, onde me imaginei vezes sem conta a baloiçar, o branco resplandecente das paredes de uma casa que se erguia à minha frente. A casa era enorme, pelo menos dava impressão que cada divisão que tivesse seria sem dúvida bem maior que o pequeno quarto que até há pouco era tudo o que conhecia. Mas não estava ninguém na rua, todos deveriam estar a almoçar, mas onde? Dirigi-me para a casa e entrei por uma porta que abri entrando numa divisão onde se encontravam algumas pessoas que desataram a fugir e gritar assim que me viram. Não percebi porquê e aquilo abalou-me muito. Porque teriam aquelas pessoas medo de mim? Tentei falar mas não consegui. Parecia que todos estes anos sem expressar qualquer som me tinha privado dessa função. Segui então de divisão em divisão movendo-me suavemente tentando que as pessoas vissem que eu não lhes queria mal. Passei por algumas divisões vazias, ouvindo a confusão de vozes que gritavam até que entrei numa grande divisão onde se encontrava uma longa mesa. Ao fundo da mesa encontrava-se uma senhora de pele enrugada e na qual reconheci a mão, poisada sobre a mesa, que me alimentou durante toda a minha vida e ao longo da mesa estavam várias pessoas e crianças que se calaram em pânico assim que entrei. Dei um passo para a frente. Um passo curto e tímido mas que foi suficiente para que uma bela criança que se encontrava perto de mim se levantasse a fugir. Fugiu de encontro a uma senhora que se levantou de faca na mão envolvendo a criança protegendo-a com os seus braços. Ela tinha um rosto lindo de cabelos compridos e encaracolados de cor loura, com uns belos olhos azuis e de resto a criança era em tudo parecida com ela. A senhora, ganhando coragem no medo daquela que tomei por sua filha, gritou-me dirigindo para mim a faca que ainda empunhava:
- Ide embora! Que desejais? Ide!
Aquela voz... sempre aquela voz. Falando-me com uma agressividade que eu não percebia e eu não resisti. Caindo de joelhos no chão deixei sair dos meus olhos lágrimas que há muito julgava perdidas e consegui finalmente falar:
- Mas... eu apenas queria... brincar...
E nisto os olhos azuis da criança que estava uns metro à minha frente mudaram de expressão. O medo deu lugar a uma compaixão e dirigiu-se a mim pegando-me na mão e arrastando-me para fora daquela sala. Ao sair vi um estranho vidro onde via a mesma menina doce que segurava a minha mão, mas essa menina segurava na mão de um monstro. Um ser de mãos grossas e cara peluda onde se realçavam dois olhos rasgados com uma pupila fina e alta numa íris amarela e um nariz achatado e constituído por duas narinas fendadas. E então eu percebi... Eu era o monstro e essa era a razão porque nunca havia brincado com as crianças que corriam o pátio do lado de fora do meu quarto. Mas a menina não me deixou estar ali muito tempo:
- Anda! - Disse ela - Vamos brincar!
E brincamos...
2 Comments:
Pois é: comentei o outro poema, mas, depois de descer mais um pouco não resisti a deixar aqui umas palavras...
(a questão é QUE palavras...)
Este é daqueles textos capazes de me dar um nó na garganta (e no cérebro, pelos vistos, pq não sei o que escrever...)
Por isso digo-te apenas que está lindo... e que dei por mim a chorar qd acabei de o ler...
Obrigado Frankie
Dark kisses***
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