A taberna estava mal iluminada, apenas com a luz da lareira que ardia no meio da sala. A taberna ficava perto de um local onde as duas principais estradas do reino se cruzavam, e por isso estava sempre atulhada da mais estranha gente. No meio de toda esta variedade de pessoas ele ficava como queria. Ninguém o notava e ele podia ficar simplesmente a um canto escuro com o capuz do manto negro a ensombrar-lhe a cara, ainda que se alguém reparasse com atenção veria uns olhos a brilharem. Olhos vermelhos de pupilas fendidas, que nenhum humano partilhava. Olhos preparados para ver no escuro, pois a luz feria-os. Se pudessem ver a sua cara estranhariam também a sua forma delgada, as sobrancelhas em que as pontas exteriores apontavam para cima na diagonal. Mas nada disto os faria desconfiar que ele não era humano, a menos que vissem a sua dentição de caninos pontiagudos que sobressaiam dos outros dentes normais.
Ele percorria todos os caminhos da região e raramente ficava mais do que uma noite no mesmo sítio. Aliás, era de noite que percorria milhas e milhas, entre montanhas, florestas e campos. Conhecia todos os cantos das ravinas junto ao mar, todas as árvores das florestas do interior, todas as casas das grandes cidades. Conhecia toda a região porque a percorria desde que se afastara dos seres da sua espécie. De noite andava, enquanto de dia, encontrava um qualquer buraco onde a sombra se mantivesse durante todo o dia e descansava, pois a luz era-lhe incómoda. Não é que o destruísse ou que de alguma forma o aleijasse, mas dava-lhe uma estranha sensação de calor exagerado que era de alguma forma dolorosa. E a luz era também um incómodo para os seus olhos que viam melhor à noite. A luz directa do Sol ou de alguma forma reflectida ofuscavam-no e causavam-lhe dor.
O seu afastamento da sua comunidade foi uma consequência natural do seu estado. Ele nunca foi como os outros demónios da noite. Nunca percebeu a maneira como eles se traiam até a eles próprios, como nunca perdiam uma oportunidade de se sobressaírem perante o seu senhor nem que isso fosse o resultado da destruição de outros, fossem humanos ou mesmo demónios. Nunca gostara da sua hipocrisia, do seu cinismo e falsidade. A honra que lhe habitava a alma contrastava com a negritude da alma dos seus semelhantes.
A sua família era da mais alta estirpe. O seu pai tinha sido um importantíssimo soldado do mal e quando a sua carreira estava no auge e se preparava para ser promovido pelo Deus Negro a seu Primeiro General foi assassinado por um seu rival assim como toda a sua família. Só ele escapou pois as suas qualidades eram já significativas e o assassino, ou por medo ou por uma tentativa de lucrar com as suas qualidades, preferiu não entrar em confronto e antes seduzi-lo a ocupar uma posição elevada junto dele. O resultado foi uma cabeça cortada e o Deus Negro teve de arranjar um terceiro demónio para ocupar o lugar de Primeiro General...
A partir daí nunca mais conviveu com os seus e votou-se a uma vida nómada, destruindo todos os demónios que encontrava pela frente protegendo os humanos das suas maléficas acções. Nunca se poderia estabelecer junto aos humanos pois eles iriam sempre receá-lo e só por momentos se permitia a introduzir-se entre eles e passar um bocado no conforto de uma taberna. Momentos esses que já estavam a terminar. Depressa partiria para aproveitar a noite, logo após acabar o seu vinho e seguiria até às montanhas a norte onde passaria o dia nas antigas minas.
Os três seguiam na sua demanda após um leve pequeno-almoço, seguindo o seu caminho ainda de noite enquanto "O Mago" explicava mais uma vez a importância d"O Escolhido" para acabar com a Era das Trevas.
- Sim, eu sei que só eu posso acabar com o Deus Negro. Tenho aprendido bastante acerca disso e de como o fazer. O que eu ainda não sei é porque tu insistes em vir comigo. - Disse "O Escolhido" encolhendo os ombros perante as palavras que não lhe eram novas.
- Já vi que estás bem instruído. - Respondeu "O Mago" pacientemente - Mas diz-me: saberás onde encontrar o Deus Negro, quando a altura chegar? Imaginas por acaso que o caminho estará livre até lá chegares?
- Podem vir os demónios que vierem, que ele enfrentá-los-á. - Disse o velho - Tenho-lhe ensinado todas as técnicas que conheço e posso dizer que foi o melhor aprendiz que já tive. Isso aliado ao talento que lhe foi concedido...
- Não entendem... - continuou "O Mago" - não é a demónios que me refiro... é a magia! E da mais poderosa! Magia que apenas eu tenho conhecimentos para contornar!
Contou então a sua história, fazendo entender aos seus companheiros a sua importância para que a profecia se cumprisse. Continuava ainda no seu relato quando "O Escolhido" lhe cortou a palavra.
- Shhh! Sinto alguma coisa... Estão demónios nesta zona!
Foram seguindo com ele na liderança enquanto "O Mago" lançava um encantamento que lhes permitisse andarem sem serem ouvidos. Foram andando até chegarem à orla da floresta onde avistaram a alguma distância um casa e viram uma mulher jovem a sair disparada da porta para fora. Fugia com todas as forças que tinha mas foi facilmente apanhada por um de dois demónios que vinham calmamente atrás dela. "O Escolhido" saiu à sua ajuda mas antes de galgar a distância que o separava da mulher um outro ser apareceu. Um ser de manto preto surgiu do nada numa rapidez impressionante projectando os dois demónios vários metros e com grande agilidade desembainhou a sua espada, cortou a cabeça a um dos demónios que se tentava levantar e espetou de seguida a espada no peito do outro, cravando-o ao chão. "O Escolhido" ficou espantado com aquilo que se passou em milésimos de segundo. Aproximou-se do ser que ficou de costas para ele, com o capuz cobrindo-lhe o rosto, sentindo-o chegar enquanto embainhava a sua espada novamente.
- Quem é tu? - Perguntou "O Escolhido".
- Não vais querer saber!- respondeu o outro enquanto se preparava para sair dali.
- Sim, quero... - disse ele enquanto lhe cortava o caminho.
Levantado levemente o rosto para olhar o humano sob as sombras do seu capuz o ser perguntou:
-Por mais estranho que eu te pareça, juras que não te virarás contra mim? Não me apetece lutar com quem não merece...
Estranhando a pergunta o humano respondeu:
- Juro-o! Qualquer um que combata demónios é meu aliado!
- Tenho os juramentos dos humanos em boa conta... - disse o ser, e retirando o capuz continuou - Podes-me chamar Anjo Negro, pois demónio negro não serei jamais!
"O Escolhido" estremeceu quando viu as suas feições e a sua primeira reacção foi a de levar a mão ao punho da sua espada, mas depois lembrou-se do juramento que tinha feito e lembrou-se que por mais estranho que pudesse parecer aquele ser tinha acabado de matar dois demónios e salvar uma mulher! Relaxou... e convidou o Anjo Negro a contar a sua história, o que este acabou por fazer, contente por o humano ter cumprido a sua palavra e ao que parecia estar preparado para o aceitar como era apesar de toda a estranheza que o envolvia.
*
O Escolhido